Há 367 anos, para o bem e para o mal, os conjurados do 1.º de Dezembro decidiram que já era tempo de acabar com a monarquia dual e restaurar um Reino de Portugal efectivamente independente da sua vizinha Espanha.
Por mim, que não tenho sonhos saudosos de uma Península Ibérica unida, até gosto deste feriado. Nunca compreendi as pulsões iberistas demonstradas por alguns portugueses (porventura fundadas em utopias megalómanas). Também não sei se uma implosão da Espanha será uma coisa boa (sobretudo para Portugal).
Sei apenas que a história foi assim e que foi Portugal, entre os vários reinos ibéricos saídos da Reconquista, que logrou escapar politicamente ao centralismo de Castela. E gosto disso, sem qualquer anti-espanholismo bacoco, compreendendo, no entanto, que a Espanha não é uma entidade única, como alguns portugueses pensam ser (nada mais ridículo do que ver portugueses a falar portunhol na Galiza - sempre que lá vou falo em português e garanto que sou compreendido sem problemas).
Há 184 anos, foi o princípio do fim para a primeira aventura constitucional portuguesa, o vintismo. Em 1823, por problemas internos e externos (das revoltas do Conde de Amarante até à restauração do rei absolutista Fernando VII em Espanha graças às tropas do duque de Angoulême, passando pela independência do Brasil em 1822), a experiência constitucional portuguesa estava com sérios problemas.
Depois da restauração absolutista em espanha, o conde de Amarante movia-se à vontade no território espanhol. Para combater uma possível invasão de revoltosos pelas Beiras, o governo português decidiu mandar dois regimentos de Lisboa para a fronteira. Mas as tropas aguardaram em Vila Franca pelo Infante D. Miguel que, em 27 de Maio de 1823, se aí juntou a eles tendo dirigido um manifesto aos portugueses, em que se podem ver os motivos que, segundo a facção realista, justificavam a revolta:
A força dos males nacionais, já sem limites, não me deixou escolher: a honra não me permitiu ver por mais tempo em vergonhosa inércia a majestade real, ultrajada e feita ludíbrio dos facciosos, todas as classes da nação com diabólico estudo deprimidas, e todos nós o desprezo da Europa e do mundo, por um sofrimento que passaria a cobardia; e em lugar dos primitivos direitos nacionais que vos prometeram recobrar em 24 de Agosto de 1820, deram-vos a sua ruína, o rei reduzido a um mero fantasma; a magistratura diáriamente despojada e ultrajada; a nobreza, à qual se agregaram sucessivamente os cidadãos beneméritos e à qual deveis vossa glória nas terras de África e nos mares da Ásia, reduzida ao abatimento, despojada do lustre que outrora obtivera do reconhecimento real; a religião e seus ministros objecto de mofa e escárnio.
Que é uma nação quando sofre ver-se assim aviltada? Eia, portugueses, uma mais longa prudência seria infâmia. Já os generosos transmontanos nos precederam na luta; vinde juntar-vos ao estandarte real que levo em minhas mãos; libertemos o rei e Sua Majestade livre dê uma Constituição a seus povos; fiemo-nos em seus paternais sentimentos; e ela será tão alheia do despotismo como da licença; assim reconciliará a nação consigo mesmo e com a Europa civilizada.
Acho-me no meio de valentes e briosos portugueses, decididos como eu a morrer ou a restituir Sua Majestade à sua liberdade e autoridade, e a todas as classes seus direitos. Não hesiteis, eclesiásticos e cidadãos de todas as classes, vinde auxiliar a causa da religião, da realeza e de vós todos: e juremos não tornar a beijar a real mão senão depois de Sua Majestade estar restituído à sua autoridade.
Não acrediteis que queremos restaurar o despotismo, operar reacções ou tomar vinganças; juremos pela religião e pela honra que só queremos a união de todos os portugueses e um total esquecimento das opiniões passadas.
(Fonte: MARQUES, A. H. Oliveira, "História de Portugal", Palas Editores, Lisboa 1986)
A situação ficou insustentável para o governo e a posição do rei D. João VI era, no mínimo, ambígua, embora o movimento do Infante e do partido da rainha D. Carlota Joaquina estivessem dispostos a destituir o rei. Este conseguiu retomar o comando da situação em 30 de Maio de 1823, quando decidiu a Vila Franca ordernar ao Infante (que entretanto fora para Santarém) que se apresentasse em Vila Franca. O infante, relutantemente, para lá foi e foi nomeado chefe do exército. O rei prometeu, entretanto, dar uma nova Constituição ao país (coisa que nunca foi feita).
No balanço da Vilfrancada, assim se chamou este movimento, quem acabou por ser o maior vencedor foi o rei, pois evitoua a sua própria destituição por parte do partido da rainha e dos seus ultra-realistas. Mas o liberalismo vintista ficou-se por aí...
Publi-reportagem ou apenas algum desconhecimento ou deslumbramento? Fico sempre na dúvida quando vejo artigos como aquele que é assinado por Gabriela Oliveira, intitulado "Espanha árabe", no Notícias Magazine n.º 694 de hoje. (atenção: texto longo)
Porquê esta sensação? Talvez, por exemplo, por frases como esta:
Córdoba era então [séc. X] a cidade mais próspera e culta da Europa, reunindo os mais importantes pensadores, poetas e artistas à volta da corte.
É claro que o facto de, também, no séc. X, o Império Bizantino ter atingido o seu apogeu (tinha conseguido bater os árabes na Síria e na Arménia), não entrou em consideração na redacção desta frase. A Europa Ocidental estava ainda a sair de um período complicado da sua história, mas o Império Bizantino, herdeiro do Império Romano do Oriente, continuava a sua marcha vindo directamente da Antiguidade tardia. E, que eu saiba, a sua capital Constantinopla fica na Europa. A afirmação é, no mínimo, imprecisa.
O artigo continua entre superlativos e hipérboles aos árabes, sua arte, cultura, etc... (uns merecidos, outros nem por isso), mas os dois últimos parágrafos são mesmo a cereja em cima do bolo (destaques meus):
Andaluzia, terra de poetas, filósofos, artistas... Terras de memórias imperecíveis da presença árabe. Ainda hoje subsistem na língua portuguesa cerca de seiscentos vocábulos árabes. Arroz, armazém, almofada, laranja, limão, alcântara, almeida, álgebra... são apenas algumas das muitas palavras que usamos no dia-a-dia. A contribuição do conhecimento árabe desempenhou um papel crucial no campo das matemáticas, da astronomia, da agricultura, das ciências náuticas. «É preciso não esquecer que foram os muçulmanos que fizeram perdurar os clássicos da Antiguidade, a cultura greco-latina, traduzindo-os primeiro para árabe. Só mais tarde, a partir do séc. XI, ficaram acessíveis em latim. A Península Ibérica foi a placa giratória a partir da qual a sabedoria antiga se propagou pela Europa, nas diferentes disciplinas», comentou Manuel Gandra. O extremismo era naquela época panágio do cristianismo, basta recordar a Inquisição e as Cruzadas contra os «pagãos infiéis». Ao percorrermos a Andaluzia fazemos uma viagem no tempo, que evoca outros locais históricos do nosso país. Córdoba e Granada reavivam memórias de um património árabe que nos é comum. Outrora todos fazíamos parte do grandioso al-Andalus.
Bem, estes dois parágrafos têm afirmações inexactas e que não respeitam a verdade histórica, para além da última ser verdadeiramente duvidosa. Comecemos pela primeira afirmação destacada por mim.
A afirmação de Manuel Gandra é pelo menos inexacta pela sua generalização. Se ele se referir ao facto de Aristóteles ou Platão terem sido primeiro traduzidos para árabe e só depois para latim, está certo. Mas, é claro que os autores latinos foram preservados sobretudo pela Igreja na Europa Ocidental, mesmo autores que poderiam, pelo conteúdo das suas obras, serem desprezados. Por exemplo, Catulo (séc. I a.C.), cujos poemas estavam muito longe da moral cristãe e que são mencionados no séc. VII d.C. por Santo Isidoro de Sevilha (Origines 6, 12, 3; 19, 33) ou ainda por Ratherius, em 965 d.C., que declarou formalmente ter lido os seus poemas (Patrologia latina de Migne, t. 136, p. 752). Depois destas referências, o texto mais antigo completo que conhecemos de Catulo data do séc. XIV. Onde foram conservados os sucessivos manuscristos que fizeram chegar até nós estes poemas? Provavelmente nas bibliotecas das catedrais e mosteiros.
Outro facto, se calhar desconhecido da maioria, é o facto de, por exemplo, Virgílio (séc. I a.C.) não ter entrado na lista de livros proibidos no tempo de Carlos Magno devido à sua eglóga IV em que fala de uma era messiânica (com a vinda de um menino), que fez com que Virgílio fosse conservado no Império Carolíngio (apesar da égloga II). Muitos autores latinos foram lidos na Idade Média, se calhar em maior número do que agora.
Por isso, a frase peca por uma generalização excessiva que só é verdadeira num número limitado de casos, isto é, em autores gregos. Ainda a este propósito, deve-se dizer que, apesar do contacto dos muçulmanos com a cultura greco-latina, eles jamais a assimilaram. Socorro-me para este ponto do que escreveu Francisco Rodríguez Adrados (universitário espanhol) que escreveu o seguinte (ABC, 14/08/2005, "Choque de civilizaciones? Pues sí"):
Porque se habla mucho dos los califas ilustrados - Harum al Rashid, Al Mamún, Al Mansur, los fatimíes de Egipto - que hacían traducir al árabe la sabídura griega que luego creció en el mismo mundo árabe (Al Andalus incluido, por supuesto) e pasó a la Cristiandad, en latín o castellano, a través en parte de España. Hubo el notable intento de combinar el Corán con Platón y Aristóteles, paralelo al de Santo Tomás y otros entre los cristianos.
Quedó en nada. Por qué essos admiradores del Islam medieval (con razón, pero sin ella en sus ataques al Cristianismo), por qué no dicen que esa flor se agostó en el siglo XI, con los selyúcidas, los almorávides, los almohades? los almohades? Que Averroes, un aristotélico, acabó confinado en Lucena, Al Motamid desterrado en África? La concordia entre el Corán y los griegos fue imposible y los filósofos fueron tenidos, más o menos, por heréticos. En Occidente triunfaron, en el mundo musulmán no. Y el islam se volvió impenetrable, esta es la cuestión. La base de todo.
Para além de que os muçulmanos não fizeram propagar toda a filosofia antiga pela Europa (afinal os textos dos autores latinos estavam disponíveis), também acabaram por não recolher grandes frutos dos autores gregos, pelo menos em alguns campos do saber.
A segunda afirmação destacada é ainda mais extraordinária pois não é apenas inexacta, é completamente falsa. Em primeiro lugar, precisamos de situar no tempo quer a Inquisição, quer as Cruzadas. A Inquisição foi criada no início do séc. XIII, dirigida contra os heréticos (por exemplo, os cátaros) e o seu papel declinou bastante no séc. XV. Não esquecer que a Inquisição espanhola (e mais tarde a portuguesa) são de natureza muito diferente dessa primeira Inquisição, pois estavam sob controlo apertado do Estado (eram inquisições reais ao serviço do estado) e não da Igreja.
Em segundo lugar, as Cruzadas iniciaram no final do séc. XI (Jerusalém foi conquistada em 1099). Mas, pode dizer-se que o espírito de cruzada foi antecedeu as próprias cruzadas, com o afluxo de francos à Espanha medieval para ajudar Afonso VII de Castela à derrota de Zalaca (1086) às mãos dos Almorávidas. Ora estes almorávidas, segundo o Dicionário de História Universal de Michel Mourre, "devido ao seu fanatismo intolerante, ao seu rígido ritualismo, provocaram graves prejuízos à brilhante civilização que florescia no princípio do séc. XI" (C.Leitores, vol. 1, pág. 56). Os Almorávidas foram derrubados pelos Almóadas, em 1147, que queriam um regresso às fontes religiosas essenciais do islão, afirmando a crença absoluta na unidade divina, e que acusavam os outros muçulmanos de serem politeístas. Também não haveria muito tolerância por estes lados.
Por outro lado, a conquista de Jerusalém por parte dos turcos seljúcidas em 1078 tornaram também mais difícil a vida das populações cristãs e judaicas na Terra Santa, bem como as peregrinações que os cristãos ocidentais costumavam fazer.
Por fim, não esquecer, para aqueles que pensam que as cruzadas foram uma agressão ao islão, que o primeiro agressor for o islão quando conquistou Jerusalém em 636 ao Império Bizantino. Os islão expandiu-se na ponta da espada e foram os muçulmanos quem primeiro atacou os cristãos.
Por outro lado, há um certo mito quando a propalada tolerância dos muçulmanos para com as minorias que vivem em estados controlados por muçulmanos. Será que ninguém ouviu falar na palavra "dhimmi". Os infiéis, segundo a lei corânica, serão sempre cidadãos de segunda classe que nunca terão os mesmos direitos que os cidadãos muçulmanos. E isso era o que acontecia na Espanha árabe.
A este propósito aconselho a leitura do texto "Jihad begot the Crusades" (parte I e parte II), de que transcrevo aqui a conclusão:
It is ahistorical and frankly absurd to separate the Crusades from the anti-Christian jihad wars that antedated and precipitated them. Four and one-half centuries of devastating jihad conquests (i.e., 632-1095 C.E.), and the cruel imposition of dhimmitude on the vanquished, primarily Christian populations, finally engendered a sustained, organized and violent response when Christendom perceived its very survival to be imperiled. Jacques Ellul has characterized the origins and effects of this transformation: [80]
…the Crusade is an imitation of the jihad. Thus the Crusade includes a guarantee of salvation. The one who dies in holy war (i.e., jihad) goes straight to Paradise, and the same applies to the one who takes part in a Crusade. This is no coincidence; it is an exact equivalent. The Crusades, which were once admired as an expression of absolute faith, and which are now the subject of accusations against the Church and Christianity, are of Muslim, not Christian origin…The nonviolence of Jesus Christ changes into a war in conflict with that waged by the foe. Like that war, this is now a holy war.
The devastating Islamic institution of jihad must be acknowledged, renounced, dismantled, and relegated forever to the dustbin of history, by Muslims themselves. As Professor Walid Phares, in a frank, astute commentary entitled “Jihad is Jihad”, noted: [81]
In the Christian world, modern Christians outlawed crusading; they did not rewrite history to legitimize themselves. Those who believe that the jihad holy war is a sin today must have the courage to de-legitimize it and outlaw it as well.
Na Idade Média o extremismo era apanágio de todos e qualquer outra asserção é pura e simplesmente falsa, para além de demonstrar pouca informação ou desconhecimento sobre o assunto (chama-se "emprenhar pelos ouvidos", toma-se acriticamente como boas as afirmações que a inteligentsia vai produzindo).
A terceira afirmação destacada não tem qualquer sentido. "Outrora todos fazíamos parte do grandioso al-Andalus". E daí? Outrora não fizemos nós parte do grandioso Império Romano também?
Também aqui recorro a Rodríguez Adrado:
De diálogo, alianza de civilizaciones, «todos somos andaluces», poco. Un gran intercambio, sí, de elementos materiales, pero ideológica y socialmente, Occidente e Islam se dieron las espaldas. Lo esencial: el Islamismo jamás se asimiló, como tantos pueblos y religiones, a la tradición greco-romana, la que hizo posible la apertura de Occidente a una nuova sociedad, a una literatura y un pensamiento más abiertos. Jamás. pese a los influjos helenizantes en los siglos del VIII al X u XI, occidentalizantes desde el XIX, en su línea central los musulmanes han mantenido un pensamiento conservador estable, teocrático.
O que me motivou a escrever esta entrada não foi uma tentativa de diminuir a civilização árabe que esteve presente na Península Ibérica de 711 a 1492 e, que por isso mesmo, teve que deixar influências por estas terras. Mas, se antigamente quase se ignorava a influência dos árabes na península, agora não se pode passar para o outro extremo, isto é o de hiperbolizar a importância dos árabes na península, comparando-os com os cristãos, considerando estes pouco mais do que neandartais. Os árabes tiveram uma civilização brilhante, mas que parou de evoluir, ao contrário da civilização ocidental que aproveitou tudo o que de bom havia nas outras culturas para se desenvolver. E, não nos podemos esquecer, que em Constantinopla estava uma civilização que nada devia aos árabes.
Artigos como estes parece-me publi-reportagem paga por algum país árabe (o que não acredito) ou apenas, aquela mania muito ocidental, de deslumbramento paroquial perante uma civilização que não a nossa, que, desde de logo, se considera como superior a nossa.
Ainda mais haveria a dizer sobre este artigo, mas vou-me ficar por aqui.
Segundo os registos, no decurso da 2.ª Guerra Púnica, a 2 de Agosto de 216 a.C., travou-se a batalha de Canas, em que Aníbal Barca, general cartaginês, venceu um exército romano comandado por Paulo Emílio e Terêncio Varrão, naquela que foi, muito provavelmente, a maior batalha do mundo antigo. As perdas romandas foram elevadas, mais de 40000 romanos e aliados mortos ou feitos prisioneiros, tendo morrido 80 senadores e 2 cônsules caíram nesta batalha.
Mas apesar da magnitude da derrota, Roma não caiu. Aníbal achou que o seu exército não seria capaz de tomar Roma. Assim. abrigou-se Cápua, na Campânia, disfrutando de todos os prazeres que os saques lhe podiam proporcionar. Tendo estado em Itália em 202 a.C. foi perdendo progressivamente terreno, pois foi-lhe impossível receber um exército de socorro ou reabastecimentos através do mar, sendo que também não conseguiu um levantamento das cidades italianas contra Roma, até que em 202 a.C. foi obrigado a socorrer Cartago. de facto, a cidade foi atacada pelos romanos sob o comando de Cipião, o Africano. Na batalha de Zama, Aníbal é derrotado por Cipião e Cartago tem que aceitar as condições de paz impostas por Roma.
O resto da história já o sabemos. Roma acabou por destruir Cartago no decorrer da 3.ª Guerra Púnica, de 149 a 146 a.C.
Mas há uma expressão que ficou desta história, as célebres "delícias de Cápua". Como se disse, Aníbal ocupou Cápua, entre 215 e 211 a.C., onde, segundo a história, os seus soldados, em contacto com os requintes e prazeres, amoleceramm, tendo Aníbal perdido a iniciativa. Assim a expressão "delícias de Cápua" ficaram como uma frase feita para ilustrar o facto de alguém se entregar aos prazeres e à preguiça, esquecendo os seus objectivos iniciais e por isso não os alcançando
O nosso grande Sá de Miranda na sua "Carta a João Roiz de Sá de Menezes" (Obras Completas, ed. de Rodrigues Lapa, Sá da Costa, 1976-77), também teme que Portugal se afunde no luxo e no prazer:
Destes mimos Indianos hei gram medo a Portugal, que nos recreçam tais danos como os de Cápua a Aníbal, vencedor de tantos anos. A tempestada espantosa de Trébia, de Trasimeno, de Canas, Cápua viciosa venceu em tempo pequeno.
Todas as espantosas vitórias de Aníbal anuladas pelo hedonismo em Cápua. Tal perigo via também Sá de Miranda nos luxos que existiam já em Lisboa desde a descoberta do caminho marítimo para a Índia.
Aliás Sá de Miranda (tal como Gil Vicente - cf. Auto da Índia) não era um entusiasta da opção pelo Índico tomada pelo rei D. Manuel I. Na sua "Carta a António Pereira, senhor do Basto, quando se partiu para a Corte co a casa toda", refere:
Não me temo de Castela, donde inda guerra não soa; mas temo-me de Lisboa, que, ao cheiro desta canela, o Reino nos despovoa.
Sá de Miranda conseirava o Oriente como causa de decadência (futura) de Portugal.
Voltando a Aníbal, este não aproveitamento (ou melhor, "esbanjamento") das suas vitórias, tornou-se paradigmático e aproveitado para ilustrar inúmeras histórias exemplares.
A 1 de Agosto de 1492 terminava o prazo dado pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, para que os judeus saíssem de Espanha. A expulsão não teve, ao contrário do que muita gente pensa, uma motivação principalmente religiosa (embora ela também existisse), mas sobretudo financeira. Os judeus constituiam grande parte da burguesia emergente que, pelo seu poder financeiro, provocavam a inveja de nobres e clero.
Aliás, essa motivações financeiras nas expulsões dos judeus, bem como a chantagem que os reis da Europa Ocidental faziam sobre a sua população judia, mantendo-os sempre sob ameaça para lhe poder extorquir dinheiro, sempre existiram durante toda a Idade Média. Por isso houve expulsões sucessivas em vários países europeus. Por exemplo, não nos podemos esquecer de que antes da expulsão decretada pelo Reis Católicos, já Filipe Augusto (1182), Filipe, o Belo (1306) e Carlos VI (1394) decretaram a expulsão dos judeus em França. Na Inglaterra, também João Sem-Terra (1210) e Eduardo I (1290) decretaram a expulsão dos judeus (sendo que com esta última a comunidade judaica inglesa praticamente se extinguiu).
Uma boa parte desses judeus veio para Portugal, no reinado de D. João II, mas também aqui não tiveram a vida fácil pois, passados poucos anos, a 5 de Dezembro de 1496, no início do reinado de D. Manuel I, foi ordenada também a sua expulsão do reino.
Obviamente que estas expulsões foram extremamente prejudiciais para os reinos ibéricos, pois grande parte da "massa cinzenta" e de sectores dinâmicos da sociedade estavam exactamente localizados nos judeus...
Mas a História não se pode reescrever (embora haja sempre quem tente).
O mito de "Che" continua por aí à solta em camisolas, em capas de cadernos e sei lá mais em quê. É uma estupidez de todo o tamanho, pois muitos do que o usam apenas conhecem a imagem romanceada e romântica da sinistra personagem. Isto mesmo pude eu comprovar quando, no tempo em que dava aulas num colégio privado, no final de uma aula perguntei a umas alunas se sabiam quem era e o que tinha feito "Che" Guevara. Escusado será dizer que apenas conheciam o mito.
Depois desta conversa, houve algumas alunas que abandonaram o "Che". Pelo menos isso, pois é tempo de as pessoas, principalmente os jovens, começarem a ver o "Che" tal como ele foi, atirando com o romantismo para as oubliettes da história.
Vem esta prosa a propósito da passagem em Cannes, no passado dia 19 de Maio, do último filme de Walter Sales "Diários de Motocicleta" que, mais uma vez, embora trate do "Che" pré-revolucionário, não deixa de cair na mitologia. Segundo Sérgio Dávila da Folha de S. Paulo:
Há um problema, que diz mais respeito ao material no qual foi baseado do que ao longa em si. Tanto as memórias de Granado quanto os diários do próprio Che o pintam com tintas messiânicas demais. Assim, mesmo na fase proto-revolucionária de que trata o filme, ele não mente, não rouba e troca as mulheres para ajudar uma velhinha moribunda.