Ainda a tradução indirecta
Se discordo de uma edição do Kalevala em português traduzido não do finlandês mas de edição inglesa é porque penso que, no século XXI e para uma língua de um país membro da União Europeia, não se justifica uma tradução indirecta, coisa que não se passava no passado e em que a tradução indirecta foi importante para a divulgação científica ou mesmo para a fundação de literaturas nacionais.
No passado, a tradução indirecta foi de uma importância enorme, pois através de uma língua intermédia, conseguia-se ter acesso a textos de uma língua praticamente desconhecida em determinado país.
Assim, por exemplo, nos dias de glória de Roma, todos os romanos cultos sabiam grego. Com o declínio de Roma o domínio da língua grega quase desapareceu na Europa Ocidental. Por isso, o contacto com alguns textos fundamentais da Antiguidade grega , na Europa Ocidental durante quase toda a Idade Média, só foi possível através das traduções feitas do grego para o árabe, que depois foi traduzido para latim e difundidas por toda a Europa. Só com a queda de Constantinopla em 1453 e com a consequente chegada de refugiados bizantinos é que o conhecimento do grego se alargou na Europa Ocidental.
Os árabes, no início da civilização muçulmana foram grandes entusiastas da tradução, não são a partir do grego, mas também do persa e do siríaco, em que a tradução indirecta também foi utilizada. Assim no-lo diz Taïeb Baccouche in La traduction dans la tradition arabe (destaques meus):
4) Mais l’activité de traduction n’a connu un essor remarquable qu’avec la dynastie des Abbasides à Baghdad soutenue par les Persans, en particulier sous le Califat d’Al Ma’mûn qui créa Beyt al-Hikma (= maison de la sagesse) et recruta des traducteurs dans les domaines scientifiques et philosophiques. On dit qu’il récompensait le traducteur par le pesant d’or de son livre. De véritables familles de traducteurs ont vu le jour.
La logique grecque fut arabisée à partir du persan puis du syriaque avant d’être traduite directement du grec.
La traduction est devenue ainsi un véritable métier pratiqué individuellement et même en groupe. L’un des plus célèbres traducteurs de l’époque, Hunayn Ibn Ishâq, était surnommé le « maître des traducteurs de l’Islam ». Son école domina le ixe s. ; on y traduisait surtout du grec.
5) On peut donc dire que la traduction est passée par deux grandes périodes : une période de traduction indirecte, où le persan et le syriaque servaient d’intermédiaires, puis une période où le sanscrit et le grec étaient traduits directement en arabe.
L’intérêt portait essentiellement sur les mathématiques, l’astronomie, la médecine et la philosophie, où Aristote était considéré le premier maître et son commentateur arabe Farâbi, le second maître.
No entanto, como diz este mesmo autor, esta actividade tradutória dos árabes era herdeira de uma
vieille tradition judéochrétienne. De véritables écoles de traduction existaient déjà. On pourrait en citer l’école nestorienne syriaque de Nizip qui traduisait surtout du grec, l’école Jacobite syriaque kinnisrin et l’école païenne des Sabéens à Harrân (Hellénopolis). Les liens entre le grec et le syriaque étaient étroits, car l’Église orientale utilisait les deux langues.
Como se sabe, muitas das traduções árabes acabaram por ser traduzidas para latim, tendo a Escola de Toledo, nos séculos XII e XIII, ficado famosa. pelas suas traduções para o latim e, depois, para o castelhano. O castelhano beneficiou imenso com esta actividade tradutória.
No caso da Bíblia, também temos que frequentemente quanto falamos de tradução da Bíblia estamos a falar da tradução da versão da Vulgata de São Jerónimo para as diversas línguas vulgares. A Bíblia é um dos livros mais traduzidos do mundo. Muitíssimas dessas traduções foram traduções indirectas que utilizaram o latim e também o grego (que embora sendo a língua original do Novo testamento, não o é relativamente ao Antigo Testamento). E muitas traduções tiveram importância para a fixação da língua para a qual foram feitas.
As literaturas sueca e noruega, por exemplo, também foram divulgadas em Portugal através de traduções indirectas. Segundo Tânia Campos no Resumo de "A recepção de Froken Julie de Strindberg em Portugal: um mosaico de textos":
Apesar de a tradução directa a partir do sueco começar já a ser uma realidade comum no nosso país, a verdade é que a tradução indirecta desempenhou sempre um papel fundamental para a recepção dos autores suecos e noruegueses em Portugal, levando os tradutores a servirem-se de textos intermediários ingleses, franceses, alemães, espanhóis e italianos, o que, na opinião de Vilas-Boas, «não deixa de afectar a qualidade dos textos».
Apesar de muitos estudiosos de tradução acreditarem que a tradução indirecta trai duplamente a obra de um autor, a verdade é que não podemos negar que o seu papel é determinante na recepção de autores de idiomas menos conhecidos em Portugal. Traduzido a partir de diversos idiomas intermediários, muitas vezes cruzados entre si, o produto final tende em encontrar-se mais próximo da língua intermédia do que da língua de partida: deixando, em muitos casos, apenas intacto um enredo.
A tradução indirecta foi, sem dúvida, um recurso útil e, em certas épocas, único, para obter conhecimento que de outro modo não seria possível. Mas, salvo raras excepções, penso que agora já não se justifica, sobretudo no caso de línguas europeias.