15 de Março de 1147
CAPITULO XXXII
Como El-Rei D. Affonso Anriques e os seus escalaram a Villa de Santarém, e foi entrada, e tomada.
DESQUE veio a madrugada sobre o quarto dalva, quando elles entederam que as velas estavam mais sossegadas, e sonorentas, e os da Villa mais desegurados, e entregues ao sono, partiram donde estavam, leixando naquelle valle os pajes com os cavalos, e tomaram o somideiro antre Motiraz, e a fonte Datamarma, a qual assi chamam em Arabigo, pelas aguas della, que são doces, e foram assi pelo meio do Vale, indo diante D. Mem Moniz que sabia bem as entradas, e saidas, e El-Rei mais atraz, e posto que por onde levaram tenção de escalar, achassem o contrario do que cuidavam, porém deos a cujo poder não póde haver contrario, lhe tornou em bem este impedimento, por mostrar assi seu poder e ajuda, que no lugar porque haviam de entrar, e sobir, tinham por certo não haver ahi nhuma guarda, e acharam estar duas velas, postas em um cadafalço, feito de novo, que se espertavam um ao outro; e nisto, a rolda que andava pelo muro requerendoás velas, chegou por hi, e falou-lhe, e os Christãos leixáram-se estar quedos, em um pão, que hi estava, até lhe parecer que as velas poderiam adormecer.
E ao cabo de pouco abalou D. Mem Martins trigozo com os seus pelo infesto, e foi por cima da caza de um oleiro, ao muro a poer a escada, em uma aste a fundo, e deu no telhado fazendo grande som; do que D. Mendo havendo grande pezar de pela ventura, espertaram as velas amergeu-se, e de hi a pouco fez assentar curvo, um mancebo, e por cima delle poz a escada mais entregue no muro por onde tanto que acima sobio logo levantou a bandeira del-Rei, que levava; subiram dous com elle, e não sendo ainda mais de tres sobre o muro, não leixaram as velas de acordar, e senti-los, e falou um delles com voz rouca, e dormente, como desvelado, e tresnoitado, e disse: Menhu que quer dizer, quem anda ahi. Respondeo então a Mendo por Aravia, que era dos da rolda, e tornava por lhe dizer cousas que compriam, que decesse abaixo; o Mouro tanto que deceo foi D. Mendo mui prestes a mata-lo, e cortou-lhe a cabeça, e deitou-a aos de fóra, para mais seu esforço, e seguro, e nesto a outra vela quando ouvio, e conheceo que eram Christãos, e não sendo ainda em cima do muro, mais que dez dos nossos, chegaram os da rolda correndo aos brados da vela que ouviram, e encontrando-se com os Christãos, vieram ás cutiladas bravamente os nossos por darem começo, e entrada ao porque iam, e os Mouros pola tolher, antes que o mais mais crecesse.
[...]
Mas o Senhor Deos, que ajuda as obras de seu serviço lhes mudou em melhor, e mais seguro sua tenção, e fadiga, que onde se trabalhavam de entrar pelo muro, entraram pela porta, e de dez escadas que fizeram, duas só abastaram para tudo, porque sobiram até vinte e cinco, os quaes correram mui prestes a quebrar as portas com um machado que lhes fora dado de fora, e britadas as fechaduras, e ambudes entrou El-rei a pé com os seus, e poendo os giolhos em terra, antre as portas, com grande prazer, se encomendou, e deu muitas graças a Deos.
Os Mouros acodiram todos alli peleijando mui rijamente, e vendo já dentro comsigo tanta gente desesperando de se poder alli ter, acolheram-se os mais delles a Alfam, mas pelo despercebimento em se acharam foram logo entrados, e mui muitos delles homens, e molheres, e moços trazidos á espada de que foi o sangue tanto pelas ruas, que parecia serem alli mortos grandes multidão de gados. Todos os que escaparam de não serem mortos na peleija, foram cativos com grandes, e ricos despojos que na Villa se acharam.
Duarte Galvão (1446?-1517) Crónica do Mui Alto e Mui Esclarecido Príncipe D. Afonso henriques, Primeiro Rei de Portugal in Biografias da História de Portugal - Volume XXXII - D. Afonso Henriques (2004), coord. José Hermano Saraiva, Matosinhos: Quid Novi, p. 54-55
E ao cabo de pouco abalou D. Mem Martins trigozo com os seus pelo infesto, e foi por cima da caza de um oleiro, ao muro a poer a escada, em uma aste a fundo, e deu no telhado fazendo grande som; do que D. Mendo havendo grande pezar de pela ventura, espertaram as velas amergeu-se, e de hi a pouco fez assentar curvo, um mancebo, e por cima delle poz a escada mais entregue no muro por onde tanto que acima sobio logo levantou a bandeira del-Rei, que levava; subiram dous com elle, e não sendo ainda mais de tres sobre o muro, não leixaram as velas de acordar, e senti-los, e falou um delles com voz rouca, e dormente, como desvelado, e tresnoitado, e disse: Menhu que quer dizer, quem anda ahi. Respondeo então a Mendo por Aravia, que era dos da rolda, e tornava por lhe dizer cousas que compriam, que decesse abaixo; o Mouro tanto que deceo foi D. Mendo mui prestes a mata-lo, e cortou-lhe a cabeça, e deitou-a aos de fóra, para mais seu esforço, e seguro, e nesto a outra vela quando ouvio, e conheceo que eram Christãos, e não sendo ainda em cima do muro, mais que dez dos nossos, chegaram os da rolda correndo aos brados da vela que ouviram, e encontrando-se com os Christãos, vieram ás cutiladas bravamente os nossos por darem começo, e entrada ao porque iam, e os Mouros pola tolher, antes que o mais mais crecesse.
[...]
Mas o Senhor Deos, que ajuda as obras de seu serviço lhes mudou em melhor, e mais seguro sua tenção, e fadiga, que onde se trabalhavam de entrar pelo muro, entraram pela porta, e de dez escadas que fizeram, duas só abastaram para tudo, porque sobiram até vinte e cinco, os quaes correram mui prestes a quebrar as portas com um machado que lhes fora dado de fora, e britadas as fechaduras, e ambudes entrou El-rei a pé com os seus, e poendo os giolhos em terra, antre as portas, com grande prazer, se encomendou, e deu muitas graças a Deos.
Os Mouros acodiram todos alli peleijando mui rijamente, e vendo já dentro comsigo tanta gente desesperando de se poder alli ter, acolheram-se os mais delles a Alfam, mas pelo despercebimento em se acharam foram logo entrados, e mui muitos delles homens, e molheres, e moços trazidos á espada de que foi o sangue tanto pelas ruas, que parecia serem alli mortos grandes multidão de gados. Todos os que escaparam de não serem mortos na peleija, foram cativos com grandes, e ricos despojos que na Villa se acharam.
Duarte Galvão (1446?-1517) Crónica do Mui Alto e Mui Esclarecido Príncipe D. Afonso henriques, Primeiro Rei de Portugal in Biografias da História de Portugal - Volume XXXII - D. Afonso Henriques (2004), coord. José Hermano Saraiva, Matosinhos: Quid Novi, p. 54-55