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Super Flumina

Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

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Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

Uma análise de discurso de um caso concreto

Recentemente comprei um livro intitulado Da Língua e do Discurso, org. por Fátima Oliveira e Isabel Margarida Duarte. Este livro é resultante de um colóquio de linguistas em homenagem ao Prof. Joaquim Fonseca. Este professor foi o primeiro, na FLUP, já em pleno 3.º ano, a fazer-me gostar de linguística (a culpa não será propriamente dos professores dos 1.º e 2.º anos, os programas é que não ajudavam muito e, de qualquer modo, deram base fundamentais). Depois de estruturalismos e gramáticas generativas, depois de Saussure, Jakobson ou Chomsky, depois fonética, fonologia, morfologia, etc... foi bom estudar uma linguística que abordasse também o discurso (não vou agora discorrer sobre definição deste...).

Entre as 31 comunicações que compõem o livro houve uma, a de Isabel Margarida Duarte (docente na FLUP), que me chamou a atenção. A comunicação tem o título "A citação no discurso de imprensa: uma «amostra» do caso moderna" e deveria ser lido por todos os aspirantes a jornalistas e mesmos por os actuais jornalistas. A comunicação analisa em concreto um texto (uma "notícia") publicado no jornal Público, em 17 de Março de 2003, assinado por Isabel Braga e intitulava-se "A mais amnésica das testemunhas da Moderna".

Logo na introdução, Isabel Margarida Duarte diz o seguinte (destaques meus):
Tentarei mostrar [...] de que modo o jogo das citações num texto de imprensa releva, sobretudo, das intenções comunicativas do autor do texto, isto é, de que modo consiste numa estratégia argumentativa ao seu dispor. A orientação argumentativa, a actividade avaliativa do locutor citador (L1) é visível na forma como cita ourelata palavras do locutor citado (L2). Ao citar, o jornalista está frequentemente a levar a cabo uma imposição subreptícia de avaliações. Mesmo quando, na aparência, é discreta, a voz do discurso citador faz-se ouvir, mais ou menos indirectamente.
No desenvolvimento da comunicação, a autora vai desmonstrar como a jornalista vai tentar descredibilizar a testemunha (o artigo é sobre o depoimento de Jorge de Sá durante o julgamento do caso Moderna) através de vários processos (em que a citação é uma delas), ao mesmo tempo que finge objectividade (através dessa mesma citação das palavras da testemunha). Como diz a autora, o uso da citação serve para (destaques meus):
... fingir que a palavra é o espelho da realidade, que existe objectividade total, quando, como sabemos, estamos perante uma construção fictiva da realidade. A objectividade dos fragmentos citados em directo é aparente, uma vez que a selecção das citações e a respectiva inserção no texto citador revelam a atitude e a subjectividade do jornalista.
Os exemplos acumulam-se, como por exemplo o modo como a jornalista caracteriza Jorge de Sá, com um perfil profissional que chama atenção para os seus cargos na Dinensino, confrontado-o com o seu depoimento, em que alega nada saber. O tipo de verbos que utilizados e comentários valorativos (do género "ainda mais amnésica do que as outras [...], o que não é dizer pouco") também contribuem para essa descredibilização. Outros processos que criam uma aparente objectividade são também analisados.

Como conclusão, Isabel Margarida Duarte refere o seguinte (destaques meus):
A utilização de mecanismos de autentificação ou de aparente objectividade por parte do jornalista, como é o caso da citação em DD [discurso directo], ou de outro qualquer modo de relato de palavras do locutor citado, talvez faça parte da cultura jornalística, da necessidade que o jornalista tem de se defender por trás das palavras dos outros, parecendo estar a ser objectivo. Mas relatar palavras dos outros pode ter muitas intenções além desta. Aquela de que dei conta, neste texto, é a que consiste em mostrar, através das palavras do locutor citado, como esse locutor é completamente indigno do nosso crédito. E no "nosso", incluem, cumplicemente, L1, o jornalista e os leitores do jornal, cuja apreciação ética, se o texto do primeiro foi eficaz, argumentativamente, não pode deixar de ser coincidente.
Em resumo, o relato de discurso está ao dispor, nos textos de imprensa como nos de ficção, da intencionalidade comunicativa e argumentativa do relator.
[...]O relato de discurso consiste pois, não numa forma de tornar objectiva e real uma narrativa (jornalística ou literária), mas, pelo contrário, numa forma de fingir que ela é objectiva e real, ou seja, num modo de, criando instrumentos de verosimilhança, a ficcionalizar
. Um texto muito interessante de análise de um texto jornalístico com que muita gente seria capaz de aprender algo e a ler as notícias de outra maneira. Recomendo a sua leitura integral.

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