Kalevala
O Português é talvez a única das grandes línguas em que não existia ainda uma tradução da Kalevala.
Por outro lado, o poema interessa-me pelas repercussões imensas que teve sobre a identidade cultural de um povo, pelo exemplo que é da génese de um épico a partir da tradição oral e pela sua influência na cultura popular, nomeadamente nas criações de Tolkien e dos seus seguidores.
Surgiu-me assim a ideia de que seria possível traduzir a Kalevala a partir das suas traduções em inglês e utilizando as canções tradicionais finlandesas que lhe deram origem como inspiração para os ritmos e sonoridades da língua que a versão em português devia tentar adaptar.
O meu problema com as traduções indirectas é que elas dependem totalmente da qualidade das traduções intermédias que se utilizam como base. O autor utilizou mais do que uma, mas, ainda assim, não há como verificar em relação ao original qual o grau de "fidelidade" (ponho fidelidade entre parênteses, porque é um conceito que tem muito que se lhe dia).
Por outro lado, se no passado este processo se utilizou (o meu avô tinha muitas livros de Dostoiévski cujas versões portuguesas eram traduzidas do francês, não do russo), penso que, actualmente, não se justifica este tipo de edição e nem está me questão a possível qualidade literária do texto em português resultante.
De qualquer modo, não sei porquê, isto fez-me lembrar esse prolífico escritor e poeta que foi António Feliciano de Castilho e a sua tradução do Fausto de Goethe, bem como o seu processo de tradução. Escreveu Castilho na Advertência (edição de 1919) a esta sua tradução:
Estão simultaneamente abertas à roda de nós, a tradução textual e ilustrativa do Sr. Laemmert, a de meu irmão, em certo modo filha da precedente, a portuguesa do Sr. Ornellas, e quatro francesas em prosa raro entremeada de pequenos trechos em verso.
Sobre cada período do poeta alemão são sucessivamente chamados a depor todos estes sete interpretes e acariados uns com os outros com a maior severidade de crítica. A minha consciência está para ali como júri imparcial incumbido e ávido de liquidar entre tantos depoimentos diversos, muita vez confusos e não poucas vezes contraditórios, as máximas probabilidades de certeza, quando a certezas se não chegue.
Passos há, devo confessá-lo, em que nem sequer boas probabilidades se liquidam; discute-se, reestuda-se, medita-se de novo e quando Deus quer transfere-se para hora melhorada, ou para outro dia, a solução da dúvida com que o actual momento se não atreve, até que afinal, atinada a verdadeira, ou a mais plausível, ou a menos ruim sabida da dificuldade, diligenceio expor a coisa a nosso modo, que todos a entendam sem esforço e a possam escutar sem desagrado nem estranheza.
Castilho, consciente de que a tradução indirecta tem sempre os críticos, e estamos a falar de meados do séc. XIX, trata, a seguir, de justificar as condições sob as quais se justifica traduzir de modo indirecto:
Aqui seria já supérfluo ponderar uma verdade, que à primeira vista pareceria paradoxo, a saber: que dadas certas circunstâncias pode um poeta de consciência verter a obra de outro sem aliás lhe conhecer a língua, muitos factos o comprovam. Monti, que deu à Itália a melhor tradução da Ilíada, pelo menos a que se lê com maior gosto, não sabia o grego.
Os salmos de David, centenares de vezes passados a diversas línguas por poetas excelentes, nunca talvez o foram do idioma original. O Oberon, que traduzido directamente do alemão [14] pela Marquesa d’Alorna tão dessalgado saiu, que mal deixa adivinhar porque é que a Wieland se dera a qualificação de Voltaire do Norte, o Oberon veio a ser um dos mais saboreados poemas em nossa língua, saído da pena de Filinto, que nos declara não saber palavra do alemão; o meu admirável poeta Machado d’Assis, ornamento brilhantíssimo das letras brasileiras, deu-nos lindos fragmentos de poesias orientais tomadas não dos textos primitivos, senão de uma interpretação inglesa; e sem me andar à procura de mais exemplos, eu próprio, que do dinamarquês e do sueco não entendo uma sílaba única, traduzi poesias suecas e dinamarquesas, e fui por competentes juizes aprovado. Tudo esteve em ter quem minuciosamente mas interpretasse. Quanto ao grego, peço meças em ignorância ao Vicente Monti. O mestre que tive dessa língua, no meu primeiro tirocínio de humanidades, desconhecia-a quase tão crassamente como os seus ouvintes, o que me fez perder-lhe para logo todo o gosto; e todavia não foi isso parte para eu não dar uma tradução de Anacreonte e outra do Rapto de Europa, por Moscho, com as quais os raros que têm voto na matéria não ficaram mal avindos.
Castilho fala-nos aqui da qualidade dos textos resultantes. Mas será que, alguns casos, ainda estaremos perante uma tradução do texto de origem? É certo que qualquer tradução é uma reescrita do texto original, mas até que ponto? Voltarei a este ponto com mais detalhe.
Só para terminar, boa notícia, em tudo isto, é ficar a saber pela Xantipa que vai haver uma edição de Kalevala traduzida directamente do finlandês. Na altura, se houver tempo, até se poderá fazer uma análise contrastiva entre os dois textos.