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Super Flumina

Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

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Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

Kalevala

Não sei se há ou não coincidências, mas ia eu escrever  sobre o Kalevala e, numa passagem pelos blogs que costumo ler, vi que a Xantipa já tinha tocado, ontem, no assunto.

Por que é que eu ia falar no assunto? Pura e simplesmente porque hoje, quando vi o Kalevala em português (de que eu tinha já algum tempo ouvido a notícia da sua publicação) na Fnac do Norteshopping e decidi ler as notas introdutórias fiquei absolutamente espantado por verificar que a versão portuguesa em questão não era uma tradução do original, mas a partir de versões inglesas. O tradutor, Orlando Moreira, tem aliás uma página, A Kalevala em Português, onde disponibiliza parte do texto e explica, também, algum dos pressupostos que presidiram a este projecto. E o que nos diz o tradutor sobre isso? (destaques meus):

O Português é talvez a única das grandes línguas em que não existia ainda uma tradução da Kalevala.
Por outro lado, o poema interessa-me pelas repercussões imensas que teve sobre a identidade cultural de um povo, pelo exemplo que é da génese de um épico a partir da tradição oral e pela sua influência na cultura popular, nomeadamente nas criações de Tolkien e dos seus seguidores.
Surgiu-me assim a ideia de que seria possível traduzir a Kalevala a partir das suas traduções em inglês e utilizando as canções tradicionais finlandesas que lhe deram origem como inspiração para os ritmos e sonoridades da língua que a versão em português devia tentar adaptar.

O meu problema com as traduções indirectas é que elas dependem totalmente da qualidade das traduções intermédias que se utilizam como base. O autor utilizou mais do que uma, mas, ainda assim, não há como verificar em relação ao original qual o grau de "fidelidade" (ponho fidelidade entre parênteses, porque é um conceito que tem muito que se lhe dia).

Por outro lado, se no passado este processo se utilizou (o meu avô tinha muitas livros de Dostoiévski cujas versões portuguesas eram traduzidas do francês, não do russo), penso que, actualmente, não se justifica este tipo de edição e nem está me questão a possível qualidade literária do texto em português resultante.

De qualquer modo, não sei porquê, isto fez-me lembrar esse prolífico escritor e poeta que foi António Feliciano de Castilho e a sua tradução do Fausto de Goethe, bem como o seu processo de tradução. Escreveu Castilho na Advertência (edição de 1919) a esta sua tradução:

Estão simultaneamente abertas à roda de nós, a tradução textual e ilustrativa do Sr. Laemmert, a de meu irmão, em certo modo filha da precedente, a portuguesa do Sr. Ornellas, e quatro francesas em prosa raro entremeada de pequenos trechos em verso.


Sobre cada período do poeta alemão são sucessivamente chamados a depor todos estes sete interpretes e acariados uns com os outros com a maior severidade de crítica. A minha consciência está para ali como júri imparcial incumbido e ávido de liquidar entre tantos depoimentos diversos, muita vez confusos e não poucas vezes contraditórios, as máximas probabilidades de certeza, quando a certezas se não chegue.


Passos há, devo confessá-lo, em que nem sequer boas probabilidades se liquidam; discute-se, reestuda-se, medita-se de novo e quando Deus quer transfere-se para hora melhorada, ou para outro dia, a solução da dúvida com que o actual momento se não atreve, até que afinal, atinada a verdadeira, ou a mais plausível, ou a menos ruim sabida da dificuldade, diligenceio expor a coisa a nosso modo, que todos a entendam sem esforço e a possam escutar sem desagrado nem estranheza.


Castilho, consciente de que a tradução indirecta tem sempre os críticos, e estamos a falar de meados do séc. XIX, trata, a seguir, de justificar as condições sob as quais se justifica traduzir de modo indirecto:


Aqui seria já supérfluo ponderar uma verdade, que à primeira vista pareceria paradoxo, a saber: que dadas certas circunstâncias pode um poeta de consciência verter a obra de outro sem aliás lhe conhecer a língua, muitos factos o comprovam. Monti, que deu à Itália a melhor tradução da Ilíada, pelo menos a que se lê com maior gosto, não sabia o grego.


Os salmos de David, centenares de vezes passados a diversas línguas por poetas excelentes, nunca talvez o foram do idioma original. O Oberon, que traduzido directamente do alemão [14] pela Marquesa d’Alorna tão dessalgado saiu, que mal deixa adivinhar porque é que a Wieland se dera a qualificação de Voltaire do Norte, o Oberon veio a ser um dos mais saboreados poemas em nossa língua, saído da pena de Filinto, que nos declara não saber palavra do alemão; o meu admirável poeta Machado d’Assis, ornamento brilhantíssimo das letras brasileiras, deu-nos lindos fragmentos de poesias orientais tomadas não dos textos primitivos, senão de uma interpretação inglesa; e sem me andar à procura de mais exemplos, eu próprio, que do dinamarquês e do sueco não entendo uma sílaba única, traduzi poesias suecas e dinamarquesas, e fui por competentes juizes aprovado. Tudo esteve em ter quem minuciosamente mas interpretasse. Quanto ao grego, peço meças em ignorância ao Vicente Monti. O mestre que tive dessa língua, no meu primeiro tirocínio de humanidades, desconhecia-a quase tão crassamente como os seus ouvintes, o que me fez perder-lhe para logo todo o gosto; e todavia não foi isso parte para eu não dar uma tradução de Anacreonte e outra do Rapto de Europa, por Moscho, com as quais os raros que têm voto na matéria não ficaram mal avindos.


Castilho fala-nos aqui da qualidade dos textos resultantes. Mas será que, alguns casos, ainda estaremos perante uma tradução do texto de origem? É certo que qualquer tradução é uma reescrita do texto original, mas até que ponto? Voltarei a este ponto com mais detalhe.


Só para terminar, boa notícia, em tudo isto, é ficar a saber pela Xantipa que vai haver uma edição de Kalevala traduzida directamente do finlandês. Na altura, se houver tempo, até se poderá fazer uma análise contrastiva entre os dois textos.

É engraçado...

... mas ontem foi o 4.º aniversário deste blog e eu nem notei isso. É certo que estou longe de ser um blogger muito assíduo (este é o 1046.º artigo - o que dá uma média inferior a um artigo por dia) e, sobretudo nestes dois últimos anos, estou longe de conseguir escrever sequer um décimo daquilo que tinha intenção de fazer, mas que, depois, não tenho tempo de o fazer.

Por várias vezes já pensei em acabar de vez com ele, mas, apesar de tudo liguei-me afectivamente a ele e, já decidi que, pelo menos nos tempos mais próximos, não o irei fazer.

Por isso, lá vou continuar o melhor possível.

ὕϐρις - Hybris

Se o Tiago Mendes fosse uma personagem de um tragédia grega clássica seria, sem dúvida, culpado de ὕϐρις.

Para alguém que diz querer-se despedir sem dramas, a sua última série de 8-posts-8 é, sem dúvida, caracterizadora do alto conceito, todo self-righteous, que o Tiago tem de si próprio, bem como demonstradora da intolerância para quem pensa diferente.

E tudo começou, apenas porque o André citou um texto de Francisco José Viegas que, independentemente dos seus méritos estilísticos, dizia apenas uma só coisa, que não pode haver assuntos tabus, foi logo acusado de tudo e mais alguma coisa.

Enfim, gente sensível.

A falta que os clássicos fazem

Estava eu a ver sossegadinho no AXN a série "Mentes Criminosas", quando a certa altura vejo escrito na legendagem um tal de "Charon", barqueiro do Aqueronte, rio que delimitava as regiões infernais na mitologia grega.

É claro que "Charon" em português nada nos diz, pois há muito que, na nossa língua, ele se chama Caronte. E o engraçado é que isto é o tipo de erro que até é fácil de evitar. O meu velhinho dicionário Porto-Editora Inglês-Português (que não é propriamente um portento de dicionário) regista a entrada "Charon" e o seu equivalente português "Caronte". É certo que o inglês até está mais perto do original grego Χάρων, mas isso não é chamado ao caso.

Não sendo um erro que dê, por si só, avaliar a qualidade da legendagem da série (seria uma injustiça fazer isso), demonstra, antes, um certo défice cultural de quem fez a tradução.

Mais uma prova de que para traduzir não basta saber línguas.

Futebolices

Depois de duas jornadas fraquitas e um jogo para a Liga dos Campeões com um resultado francamente mau, este fim de semana foi particularmente azul. E o Sporting lá ajudou ainda mais o Porto. Ainda bem... continuem.

Quanto ao sorteio para o Euro, tivemos muita sorte. O Scolari já veio baixar as expectativas, mas mal será se não passarmos o grupo. A Suíça, República Checa e Turquia não são propriamente colossos ou protentos futebolísticos. Mas, enfim, até foi muito bom, quase não poderia ser melhor.

E assim vai o nosso futebol...

367 anos

Há 367 anos, para o bem e para o mal, os conjurados do 1.º de Dezembro decidiram que já era tempo de acabar com a monarquia dual e restaurar um Reino de Portugal efectivamente independente da sua vizinha Espanha.

Por mim, que não tenho sonhos saudosos de uma Península Ibérica unida, até gosto deste feriado. Nunca compreendi as pulsões iberistas demonstradas por alguns portugueses (porventura fundadas em utopias megalómanas). Também não sei se uma implosão da Espanha será uma coisa boa (sobretudo para Portugal).

Sei apenas que a história foi assim e que foi Portugal, entre os vários reinos ibéricos saídos da Reconquista, que logrou escapar politicamente ao centralismo de Castela. E gosto disso, sem qualquer anti-espanholismo bacoco, compreendendo, no entanto, que a Espanha não é uma entidade única, como alguns portugueses pensam ser (nada mais ridículo do que ver portugueses a falar portunhol na Galiza - sempre que lá vou falo em português e garanto que sou compreendido sem problemas).

Viva a Restauração

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