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Super Flumina

Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

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Liberae sunt enim nostrae cogitationes - Cícero (Mil. 29 - 79) . Um blog de Rui Oliveira superflumina@sapo.pt

Aborto ilegal em Espanha

Não reparei se o assunto está a ser muito seguido em Portugal, mas em Espanha, sobretudo em Barcelona e Madrid há clínicas de aborto privadas que foram fechadas pela suspeita de prática de aborto ilegal. Só que este aborto ilegal não tem nada com o aborto de vão de escada. Aqui a ilegalidade é outra.

Do que pude ler na imprensa, a lei espanhola, aprovada há mais de 20 anos, permite o aborto em três situações: a) violação com denúncia prévia e até às 12 semanas; b) má formação do feto até às 22 semanas e c) em caso de risco de vida para a mãe, por motivos físicos ou mentais, sem limite de tempo.

Nas clínicas agora fechadas, parece que o procedimento para o caso c), sobretudo o relatório psiquiátrico sobre o perigo para a saúde mental da mãe era simplificado ao extremo.

Zapatero, que não tencionava falar de aborto nas próximas eleições de Março, já pediu ao PSOE para estudar o assunto.

Bem, com tudo isto, e com gente já em prisão preventiva, vamos lá ver como acaba. Mas, o que parece, é que a lei espanhola se presta a ser torneada. Quando nesta notícia se diz que 96,68% dos abortos são para proteger a saúde da mulher, alguma coisa está mal...

Dizem que não existe...

Por várias vezes lê-se em alguns blogs de esquerda críticas aqueles que criticam o "politicamente correcto". Segundo estes blogs o politicamente correcto não existe. O problema é que ele, insiste em desmenti-los e, vezes sem conta, aparece bem à vista de todos.

Uma dessas aparições deu-se agora na inanarrável BBC, que decidiu censurar Fairytale of New York, a conhecida canção de Natal dos The Pogues com Kirsty MacColl. Porquê? Para não ofender os homossexuais, pois há um verso da canção reza assim:

"You scumbag, you maggot you cheap lousy faggot, Happy Christmas your arse I pray God It's our last."

Claro que se fosse ofensivo para cristãos, não haveria problema algum para a BBC. Mas, ofensivo para homossexuais, muçulmanos ou qualquer outra minoria, não, isso na passa no infalível lápis azul da BBC.

Enfim, e depois ainda há alguns que nos querem dar lições e andam sempre a falar no Index.

O estado da arte (II)

Quando escrevi o meu artigo O estado da arte parti de uma crítica Rigoletto no S. Carlos, o horror que o Henrique Silveira tinha feita da récita inicial do Rigoletto actualmente em cena no Teatro Nacional S. Carlos. Entretanto, o Henrique já escreveu duas sequelas: Rigoletto no S. Carlos - a vergonha continua e Rigoletto no S. Carlos - O canto. O retrato obtido é no mínimo assustador.

Por outro lado, o desastre deste Rigoletto também já foi mencionado pelo João Gonçalves no seu Rigoletto Pátio Bagatela.

Agora é Augusto M. Seabra tem três excelentes artigos no seu blog Letra de Forma: Ah! La maledizione!! - I, Ah! La maledizione!! - II e S. Carlos - I. E ameaça não ficar por aqui.

Parece que o S. Carlos terá batido no fundo. Será que vai continuar a cavar?

Da tradução (I)

E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosophia, este avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e desejar. E quem bem o estudar e husar de sua enssynança, entendo que sera fora da pena e doesto que disse. E deste volume os primeiros dous livros, segundo me parecem que teem avantagem do terceiro, e aquelles achei mais claros. O terceiro achey muito scuro, por que reconta estorias e exemplos, e parece que screvia a quem as sabia. E algũas vezes poem pallavra por sentença, e per hũa pequena sentença dá a entender hũa grande estoria. E porem, Senhor, ainda que todo o livro seja mal tornado, este derradeiro entendo que he peor, em tanto que em algũus logares, ainda que nom forom muitos, eu acerca screvia a aventuira, nom entendendo o que o livro dezia. Mas por as razõoes que primeiro disse, ante o quis assy acabar que o leixar remendado com spaços que nom fossem tornados, ou por aquela scureza o leixar dacabar. Por agora fiz como entendi, e se prouver della a vossa mercee, esto ey por grande soldada daqueste trabalho.

"Dedicatoria a D. Duarte", Livro dos Ofícios de Marco Tullio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Ifante D. Pedro, Duque de Coimbra. Edição crítica, segundo o ms. de Madrid, prefaciada, anotada e acompanhada de glossário, por Joseph M. Piel. Acta Universitatis Conimbrigensis, por ordem da Universidade, 1948, p. 4  

Quadratura do círculo

Coloquei n'O Insurgente um artigo sobre o Kosovo chamado País inviável. Por sua vez o Miguel Madeira contrapôs um artigo chamado Kosovo, província sérvia viável?

O facto de pensar que o Kosovo ser, neste momento e nos próximos anos, um país inviável não quer dizer que ache mais viável o Kosovo como província sérvia. Penso que nunca mais se poderá voltar ao status quo de 1999 (que, de qualquer modo, estava longe de ser bom).

Sinceramente, penso que toda a gente meteu as mãos pelos pés neste assunto. É lógico que, nesta altura, já não há hipótese de uma boa solução.

Já não vale a pena falar sobre o que originou a guerra de 1999, mas, de qualquer modo, o comportamento da comunidade internacional nos últimos 8 anos foi, pura e simplesmente, lamentável (mas, isso, não foi só com o Kosovo). Só que estes 8 anos aprofundaram ainda mais (se é que era possível) a separação étnica no Kosovo. Pensar que se pode fazer um estado multiétnico no Kosovo é pura utopia, mas utopia da má, daquela que acaba em pesadelo (sobretudo para as minorias, que não são só sérvios).

É óbvio que os sérvios e albaneses do Kosovo não viverão em paz nas próximas dezenas de anos. Por isso,a independência do país, que me parece inevitável, será sempre uma piada de mau gosto, criando mais um estado falhado, dependente da comunidade internacional.

Quanto à solução para o assunto, é claro que não a tenho...

Pelo menos, este vai tentar...

Não sei se Sarkozy vai conseguir ou não aquilo que pretende com o seu plano que visa reduzir as despesas públicas, tal como aqui explicado pelo Le Figaro.

Mas, pelo menos, e ao contrário do nosso primeiro-ministro, Sarkozy não pretende regularizar as contas públicas apenas à custa dos impostos pagos pelos cidadãos, mas vai tentar reduzir as despesas do Estado.

Como diz a prórpia notícia no jornal, desde que se falou nisso em 1919, os sucessivos governos franceses falharam completamente (e nós sabemos como os franceses, de direita e esquerda, gostam do Estado) este objectivo.

Mas não tenho muitas esperanças de que Sócrates alguma vez pense nisso.

Profetas de desgraça

O Papa Bento XVI continua a surpreender-me pela positiva e esta notícia aí vem, mais uma vez, confirmar esta minha ideia positiva do seu papado até agora (destaques meus):

Pope Benedict XVI has launched a surprise attack on climate change prophets of doom, warning them that any solutions to global warming must be based on firm evidence and not on dubious ideology.

The leader of more than a billion Roman Catholics suggested that fears over man-made emissions melting the ice caps and causing a wave of unprecedented disasters were nothing more than scare-mongering.


The German-born Pontiff said that while some concerns may be valid it was vital that the international community based its policies on science rather than the dogma of the environmentalist movement.


Ainda bem que há alguém com bom senso.

O estado da arte...

... musical parece estar, em Portugal, a ir de mal para pior, pelo menos no que diz respeito ao "nosso" (porque pago por todos os contribuintes) Teatro Nacional S. Carlos, pelo menos se acreditarmos no Henrique em mais um dos seus artigos depois de vir de uma representação de ópera. Por mim, não tenho dificuldade em acreditar que é verdade o que ele diz.

É certo que nos últimos tempos não tenho ido a muitos concertos e, quando vou, são aos que se realizam por aqui à volta do Porto. Só para dizer que ainda não houve concerto/representação que o Henrique tivesse comentado em que tenha estado presente. Mas, as suas críticas são tão concretas que é difícil não serem verdadeiras até pela minha própria experiência no campo da música.

Durante muito tempo pertenci a vários coros amadores que cantavam música sacra, com grande predominância para compositores como Haendel, Bach, Haydin, Gounod. Nos anos 80, a acompanhar-nos em alguns dos nossos concertos tivemos a então moribunda Orquestra Sinfónica do Porto, Digo bem, moribunda, pois até o então seu próprio maestro titular, José Atalaya, se queixava de falta de músicos, que tinha que fazer adaptações para executar certas peças, devido a essa falta de músicos, etc.

Mas o que me chocava mais na altura era a atitude dos músicos, que eu diria, de um modo simpático, ser muito pouco profissional. Por um lado, com ou sem razão, o desdém que eles tinham pelo maestro titular. Fartavam-se de nos dizerem que o Atalaya não percebia nada daquilo, etc. etc. Por outro lado, nos ensaios, dizer que davam o litro era utopia. Eu sei que nós éramos amadores (isto é, o coro, não os solistas que eram profissionais e pagos a preço de mercado), mas tocar era a profissão deles. No entanto, às vezes parecia que tanto se lhes dava, como se lhes deu.

O que mes espanta é que passados vinte e poucos anos, ao ler as críticas do Henrique parece que estou a ver um quadro  passado. Solistas, embora profissionais, que deixam algo a desejar (ao menos os nossos eram nacionais e se alguns dos que cantaram connosco eram bons, outros tinha a sua categoria, no mínimo, sobrestimada), direcções algo erráticas (o José Atalya era, por vezes, para o coro, um pesadelo, pois raramente nos dava entradas, o que num coro amador era um pouco problemático, mesmo havendo muitos de nós a saber ler música), desequilíbrio entre os sons dos vários naipes da OSP (entre outras coisas).

É triste que estas coisas se passem no TNSC que, até por ser público, tinha obrigação de evoluir. Coisas que poderiam ser admissíveis há vinte e cinco anos, não o podem ser actualmente. Quando vou a um concerto (não é muito normal ir a uma ópera, é um género que não gosto muito), espero ter o prazer de ouvir um bom concerto. Não me considero sequer um melómano, mas já ouvi música suficiente nos últimos 30 anos, já cantei em mais concertos dos que me consigo lembrar (e, apesar de amador e não ganhar nada com isso, sempre fui crítico de mim mesmo), pelo que acho que devo esperar um mínimo de competência e respeito pelo público.

Infelizmente isso parece não estar a acontecer no São Carlos.

Ainda a tradução indirecta

No seguimento dos meus artigos anteriores (sobre a tradução do Kalevala e de As Mil e Uma Noites), queria ainda falar um pouco da tradução indirecta.

Se discordo  de uma edição do Kalevala em português traduzido não do finlandês mas de edição inglesa é porque penso que, no século XXI e para uma língua de um país membro da União Europeia, não se justifica uma tradução indirecta, coisa que não se passava no passado e em que a tradução indirecta foi importante para a divulgação científica ou mesmo para a fundação de literaturas nacionais.

No passado, a tradução indirecta foi de uma importância enorme, pois através de uma língua intermédia, conseguia-se ter acesso a textos de uma língua praticamente desconhecida em determinado país.

Assim, por exemplo, nos dias de glória de Roma, todos os romanos cultos sabiam grego. Com o declínio de Roma o domínio da língua grega quase desapareceu na Europa Ocidental. Por isso,  o contacto com alguns textos fundamentais da Antiguidade grega , na Europa Ocidental durante quase toda a Idade Média,  só foi possível através das traduções feitas do grego para o árabe, que depois foi traduzido para latim e difundidas por toda a Europa. Só com a queda de Constantinopla em 1453 e com a consequente chegada de refugiados bizantinos é que o conhecimento do grego se alargou na Europa Ocidental.

Os árabes, no início da civilização muçulmana foram grandes entusiastas da tradução, não são a partir do grego, mas também do persa e do siríaco, em que a tradução indirecta também foi utilizada. Assim no-lo diz Taïeb Baccouche in La traduction dans la tradition arabe (destaques meus):

4) Mais l’activité de traduction n’a connu un essor remarquable qu’avec la dynastie des Abbasides à Baghdad soutenue par les Persans, en particulier sous le Califat d’Al Ma’mûn qui créa Beyt al-Hikma (= maison de la sagesse) et recruta des traducteurs dans les domaines scientifiques et philosophiques. On dit qu’il récompensait le traducteur par le pesant d’or de son livre. De véritables familles de traducteurs ont vu le jour.

La logique grecque fut arabisée à partir du persan puis du syriaque avant d’être
traduite directement du grec.

La traduction est devenue ainsi un véritable métier pratiqué individuellement et même en groupe. L’un des plus célèbres traducteurs de l’époque, Hunayn Ibn Ishâq, était surnommé le « maître des traducteurs de l’Islam ». Son école domina le ixe s. ; on y traduisait surtout du grec.

5) On peut donc dire que la traduction est passée par deux grandes périodes : une période de traduction indirecte, où le persan et le syriaque servaient d’intermédiaires, puis une période où le sanscrit et le grec étaient traduits directement en arabe.

L’intérêt portait essentiellement sur les mathématiques, l’astronomie, la médecine et la philosophie, où Aristote était considéré le premier maître et son commentateur arabe Farâbi, le second maître.

Ou seja, os árabes precisaram primeiro de traduções indirectas, de civilizações que estavam há mais tempo em contacto com o grego (e o sânscrito, pois também literatura e cultura hindu foi traduzida pelos árabes), até dominarem estas línguas e poderem fazer traduções directas.

No entanto, como diz este mesmo autor, esta actividade tradutória dos árabes era herdeira de uma

vieille tradition judéochrétienne. De véritables écoles de traduction existaient déjà. On pourrait en citer l’école nestorienne syriaque de Nizip qui traduisait surtout du grec, l’école Jacobite syriaque kinnisrin et l’école païenne des Sabéens à Harrân (Hellénopolis). Les liens entre le grec et le syriaque étaient étroits, car l’Église orientale utilisait les deux langues.

Como se sabe, muitas das traduções árabes acabaram por ser traduzidas para latim, tendo a Escola de Toledo, nos séculos XII e XIII, ficado famosa. pelas suas traduções para o latim e, depois, para o castelhano. O castelhano beneficiou imenso com esta actividade tradutória.

No caso da Bíblia, também temos que frequentemente quanto falamos de tradução da Bíblia estamos a falar da tradução da versão da Vulgata de São Jerónimo para as diversas línguas vulgares. A Bíblia é um dos livros mais traduzidos do mundo. Muitíssimas dessas traduções foram traduções indirectas que utilizaram o latim e também o grego (que embora sendo a língua original do Novo testamento, não o é relativamente ao Antigo Testamento). E muitas traduções tiveram importância para a fixação da língua para a qual foram feitas.

As literaturas sueca e noruega, por exemplo, também foram divulgadas em Portugal através de traduções indirectas. Segundo Tânia Campos no Resumo de "A recepção de Froken Julie de Strindberg em Portugal: um mosaico de textos":

Apesar de a tradução directa a partir do sueco começar já a ser uma realidade comum no nosso país, a verdade é que a tradução indirecta desempenhou sempre um papel fundamental para a recepção dos autores suecos e noruegueses em Portugal, levando os tradutores a servirem-se de textos intermediários ingleses, franceses, alemães, espanhóis e italianos, o que, na opinião de Vilas-Boas, «não deixa de afectar a qualidade dos textos».

Apesar de muitos estudiosos de tradução acreditarem que a tradução indirecta trai duplamente a obra de um autor, a verdade é que não podemos negar que o seu papel é determinante na recepção de autores de idiomas menos conhecidos em Portugal. Traduzido a partir de diversos idiomas intermediários, muitas vezes cruzados entre si, o produto final tende em encontrar-se mais próximo da língua intermédia do que da língua de partida: deixando, em muitos casos, apenas intacto um enredo.

A tradução indirecta foi, sem dúvida, um recurso útil e, em certas épocas, único, para obter conhecimento que de outro modo não seria possível. Mas, salvo raras excepções, penso que agora já não se justifica, sobretudo no caso de línguas europeias.

As mil e uma noites

Depois de ter feito o meu artigo sobre a Kalevala, lembrei-me de uma outra obra-prima da literatura mundial que circulou/circula em português através de traduções indirectas. Só que aqui o problema ainda é muito maior porque não há qualquer tipo de fixação de texto.

Por outro lado, as versões que serviam de base para o português, quase todas elas com base no texto de Anthoine Galland, que em razão da moral e bons costumes, aligeirou as passagens mais picantes do texto original árabe, tendo por outro lado acrescentado contos que originalmente não pertencia a esta colecção de contos.

Lembrei-me então que, quando jovem, o meu avô tinha entre os seus livros uma edição das Mil e uma noites publicada nos anos 40. Foi por essa edição que li as histórias das Mil e uma noites. Procurei-a na biblioteca do meu pai e encontrei-a.

"As mil e uma noites" - Edição especial baseada nos melhores textos orientais e coligida por Eduardo Dias, Lisboa, A. M. Teixeira & C.ª (Filhos), 1943-44

Não sei muito sobre este orientalista Eduardo Dias, apenas que nasceu em 1888 e morreu em 1949, tendo publicado outras traduções e livros sobre o Médio-Oriente. Naturalmente, por curiosidade, foi ver o que ele dizia na "Apresentação" no volume I. É um texto interessante, que releva uma abordagem à tradução que, no mundo ocidental, estava a dar as últimas. Espero voltar mais tarde a esta questão do modo de ver a tradução e algumas das faes por que passou (e passa).

Em primeiro lugar faz referência ao que se fez em Portugal até essa data com As mil e uma noites:

É notório que o modêlo usado entre nós foi sempre a tradução francesa de Galland, à qual o autor destas linhas fêz, não há muito, longa referência noutro livro. Essa tradução - deve repetir-se é, para a sua época (1704), um trabalho notável, e julgar-se-á das difilcudades que apresentou se tivermos em conta que foi a primeira conhecida na Europa e teve como base manuscritos dispersos e redigidos em vários dialectos árabes. Outros orientalistas francesas continuaram a obra de Galland, deixada incompleta, - e ainda outros se aproveitaram dela para exibirem o que descaradamente chamaram «novas traduções»...
Em Portugal, o saboroso livro tam caído em mãos desastradas. A partir da edição que surgiu em 1801 - «traduzida em francês por Mr. Galland e do francês em português pelo tradutor do Viajante Universal» - e que é de supor tenha sido a primeira, até outras mais recentes, os disparate acumulantes de maneira incrível.
Um só exemplo, para não maçar: Determinada passagem devia traduzir-se em francês (não tenho aqui a edição de Galland) mais ao menos assim: «... le sol était balayé et arrosé et l'air y était tempéré». Nas edições portuguesas que foi possível consultar, o «arrosé» aparece transformado em água de rosas; sendo esta, exactamente, a redacção do homem do Viajante Universal: «... corria um brando zéfiro e o calçado estava regado de água rosada»...

De facto a tradução de Galland teve uma influência enorme em quase todas as outras traduções europeias durante muito tempo. Portugal não foi excepção. Quanto às traduções risíveis, não será a primeira, nem a última

Depois, Eduardo Dias descreve a sua abordagrm à tradução que, muitos, sem dúvida, não hesitarão de classificar como eurocêntrica:

Na edição ora apresentada excluiui-se o processo de tradução literal, e fêz-se o que se pôde, tanto quanto o engenho auxiliou, para realçar o produto da imaginação criadora, mostrando assim, em forma acessível ao gôsto europeu, a mais atraente substância de As Mil e Uma Noites. Para isso, foram implacàvelmente diluidas as espêssas roupagens de que os escritores orientais abusam, por môr da natural disposição dos ouvientes, sempre em maior número que os leitores. [...]

Assim, tendo em vista a edição dos jesuitas de Beirute e a última do Cairo, e ainda a versão inglesa de Burton, além de outras menos importantes, diligenciou-se formar um texto leve e agradável, no estilo mais simples e adequado, mas sem alterar o sentido e o carácter da narrativa. Observe-se também que, dentro do mesmo critério, evitou-se a preocupação de Mardrus em sublinhar a vermelho certas passagens da edição de Bulaque. Esta edição é tida como impressionante e completa em conseqüencia do erotismo abjecto dos trechos incluídos na tradução de Mardrus, quadros êsses que o orientalista Galland e seus continuadores já tinham evidentemente desprezado como impróprios da civilização ocidental. [...]

Já agora, para oferecer tôdas as explicações, dir-se-á que nesta edição foram abreviadas as narrativas prolixas, e suprimidas as enfadonhas e frequüentes repetições, tal como as longas e insulsas tiradas poéticas - estas últimas fabricadas especialmente para satisfazer os ouvintes orientais, que deliram quando o narrador suspender um lance da história e grunhe umas lérias sem relação com o texto da prosa. Depois - já o disse Heine - versos traduzidos são, quási sempre, raios de lus empalhados.

Bem, o texto da "Apresentação" ainda continua, mas vou-me deter por aqui, pois é onde está o essencial sobre o processo de radução empreendido para a obra. Algumas observações. Há uma tentativa de adequação do texto ao leitor ocidental. O compilador não teve a mínima intenção de fazer a tradução integral da obra, mas apenas reformulá-la, adequando ao gosto e moralidade dos seus leitores.

Por isso, através da consulta de diversas fontes, a fim de fazer a selecção que melhor lhe convinha para os seus propósito, não hesita em eliminar ou atenuar os pormenores que ela considera como mais escabrosos e que, apesar de tudo, foram traduzidos, por exemplo, em inglês em plena época vitoriana.

Este processo de eliminar aquilo que se pensa pouco adequado para os leitores era habitual na época e nenhum autor, por mais consagrado que fosse, estava isento: Shakespeare, por exemplo, teve uma versão bowdlerized. Por exemplo, em 1789, Miguel do Couto Guerreiro traduziu Ovídio e o título do seu livro era "Cartas de Ovidio chamadas Heroides, expurgadas de toda a obscenidade, e traduzidas em Rima vulgar: ...". Já em 1783, José António da Mata, escreveu o seguinte no "Prólogo" à sua tradução das Odes de Horácio:

Ultimamente como Horácio foi tão libertino, que nunca escolheu lei ou religião alguma, [...] ainda que alguns com pouco fundamente o fazem Académico, outros Epicúreo, outros Pitagórico; contudo, observadas as suas palavras e costumes, dissera eu que segiui a lei da Natureza, abraçando todos os ditames do apetite e leviandade, por cujo motivo escreveu muitas obscenidades de que com todo o cuidado e diligência o expurguei nesta minha tradução, pelo perigo que nisto corre a inocência.

O mundo mundou muito nos últimos 60 anos e o modo de ver e fazer tradução de obras estrangeiras (neste caso, por acaso, estamos a falar de literatura) também se alterou, sendo que, os pressupostos que estiveram na base da compilação de Eduardo Dias de As Mil e Uma Noites não serão, actualmente, aceites pela maioria dos tradutores actuais.

Traduções como as das Mil e Uma Noites tiveram a sua importância, dando a conhecer, mesmo que com simplificações e omissões, uma literatura bastante desconhecida.

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