Já disse várias vezes que no que toca a tradução e legendagem de programas televisivos não sou demasiado duro para com alguns do erros que por vezes se descobrem nos ditos programas. E porquê? Porque sei em que condições frequentemente estes trabalhos são feitos. E, se eu me queixo pelos prazos loucos que tenho, por vezes, para fazer traduções, sei que no mundo da televisão os prazos são extremamente curtos para um trabalho tão específico como é o da legendagem. Por isso, tendo a compreender a dificuldade da tarefa.
No entanto, há erros e erros, e se uma boa tradução ou legendagem não pode ser avaliada pelo apontar erros pontuais, há pormenores que podem deitar a reputação do trabalho abaixo, não propriamente por uma questão de tradução errada mas, por exemplo, por demonstrar uma falha na cultura do tradutor.
É que na tradução (agora tomada aqui em
latu sensu, isto é, englobando interpretação e legendagem) é muito mais do que passar um texto (também não desenvolverei aqui o conceito de texto que, nesta acepção, não se limita a objectos escritos) de uma língua para outra. Por outro lado, não basta saber línguas (pelo menos a de partida e a de chegada) para se ser bom tradutor. É que o tradutor é um intermediário entre duas culturas e por muito próximas que elas sejam, têm sempre particularidades que as fazem distinguir. Por outro lado, para se fazer uma boa tradução, o tradutor tem que fazer pesquisa e investigar e, aqui entra o problema dos prazos curtos (e da ignorância de quem frequentemente encomenda as traduções, pois pensam que traduzir é apenas uma transliteração), que impedem que esta pesquisa se faça em condições aceitáveis, advindo daí alguns dos erros que por vezes se observam.
Todavia, aquilo que observei hoje no
Canal História num programa chamado "Os esbirros de Mussolini" é um erro que releva mais de uma deformação deficiente, não só universitária, mas muito principalmente pré-universitária.
É que a dada altura, fala-se do "Tratado de Lateran" em vez do Tratado de Latrão. Este tratado que pôs fim à contenda que desde o fim dos Estados Papais em 1871 opunha o então Reino de Itália e a Santa Sé e foi assinado em 11 de Fevereiro de 1929, no palácio de Latrão. Só que, que quem fez a versão portuguesa, por ignorância ou descuido, manteve a palavra inglesa "Lateran", não se lembrando sequer que, provavelmente, haveria um nome português para a dita palavra. Isto acontece, com a maior das probabilidades, por deficiência cultural do tradutor.
E se digo isto é porque já não é a primeira, nem segunda, nem terceira vez que noto que nomes próprios, topónimos, etc. não são traduzimos mesmo havendo já palavras portuguesas para essas palavras, algumas já lexicalizadas em português há centenas de anos.
São pormenores como este que podem arruinar uma tradução, pois revelam deficiências culturais que provavelmente se manifestarão noutros pontos da tradução e que nenhum domínio de língua, por melhor que seja, pode esconder.
Como diz Hans Vermeer no seu
Esboço de uma teoria da tradução (ASA, 1986), "
é indispensável inteirar-se bem e detalhadamente sobre todo o assunto que apareça numa tradução. Sem saber, não há tradução". (destaque do autor)
Por vezes a brevidade dos prazos impede a realização desta tarefa, mas o tradutor tem também obrigação de manter e actualizar uma cultura geral que resolverá muito destes problemas que vão surgindo. E, neste caso particular, trata-se de um problema de cultura geral.
A tradução é uma tarefa mais complexa e exigente do que a maioria das pessoas pensa e passa, também, por pormenores como este.