Garcilaso de la Vega (não confundir com Inca Garcilaso de la Vega) foi um dos mais extraordinários poetas espanhóis do séc. XVI. Juntamente com Boscán, introduziu na Península Ibérica a poesia "ao modo italiano", isto é, os sonetos e canções.
Se no séc. XV se pode encontrar na poesia espanhola, e já agora portuguesa, uma grande infiltração de motivos petrarquistas, com Boscán e Garcilaso, não se trata de uma influência vaga, mas antes de uma imitação consciente e directa do seu modelo.
Mas, se Garcilaso imitou Petrarca, também foi fonte de muitos poetas posteriores. Um dos casos mais famosos é o seu Soneto I, cujo o próprio primeiro verso tinha uma ressonância petrarquista (cf. Petrarca, Soneto CCXCVIII, "Quand'io mi volgo in dietro a mirar gl' anni"). Este soneto teve inúmeros imitadores no Siglo de Oro (cf. Lope de Vega na sua versão "ao divino").
Soneto I
Quando me paro a contemplar mi 'stado
y a ver los passos por dó m'han traýdo,
hallo, según por do anduve perdido,
que a mayor mal pudiera aver llegado:
mas quando del camino 'stó olvidado,
a tanto mal no sé por dó é venido;
sé que me acabo, y más é yo sentido
ver acabar comigo mi cuydado.
Yo acabaré, que me entregué sin arte
a quien sabrá perderme y acabarme
si quisiere, y aún sabrá querello:
que pues mi voluntad puede matarme,
la suya, que no es tanto de mi parte,
pudiendo, ¿qué hará sino hazello?
PS. É preciso notar que "imitação", no séc. XVI, não tinha qualquer conotação negativa. A ideia de obra de arte como algo saído do génio individual, único, do artista é obra do séc. XIX, do Romantismo. Voltarei mais tarde ao conceito de imitação
Leio no JN de hoje que José Saramago revelou que o seu novo livro Ensaio sobre a lucidez vai ser "um escândalo dos diabos". Além disso, fiquei também a saber que o livro irá ter uma edição de 100 mil exemplares.
Para além do facto do título conter, para mim, alguma ironia, pois, como é que alguém que demorou 40 anos para fazer uma crítica ao regime cubano pode querer fazer um ensaio sobre a lucidez, parece-me que Saramago ao forçar sobre a nota do "escândalo" é porque nada mais tem de relevante a dizer-nos e por isso resta-lhe apenas o escândalo.
Ou então, tendo em conta o número de exemplares da edição, tudo não passa de uma estratégia de marketing. Saramago devia lembrar-se do que diz Boileau (inspirado em Horácio) em L'Art Poétique, III, vv. 269-274:
Que le début soit simple et n'ait rien d'affecté. N'allez pas dès l'abord, sur Pégase monté, crier à vos lecteurs, d'une voix de tonerre: «Je chante le vainqueur des vainqueurs de la terre.» Que produira l'auteur après tous ces grands cris? Le montagne en travail enfante une souris.
Será que Saramago grita por escândalo e, depois, tudo não passa de uma tempestade num copo de água? O futuro dirá...
Tanto o Rua da Judiaria como a Grande Loja do Queijo Limiano falaram deste artigo saído no Guardian de 6/12/2003 de Julie Burchill, onde a autora não só desmitifica aquela ideia de que os judeus apenas são odiados devido às políticas do estado de Israel em relação aos palestinianos, mas como ainda faz uma pergunta pertinente: "What sort of world do we live in, when racism is "allowed" to be reported only if it comes from the white and the right? What about a stubborn, shimmering little thing called truth?" Absolutamente imperdível.
Francesco Petrarca (1304-1374) foi um dos poetas que mais influenciou as gerações posteriores. Mas ao contrário do que esperava o próprio poeta, não foi através das suas obras sérias ou em latim (p.ex. África com que ele esperava obter a fama), mas sim com as suas Rerum uulgarium fragmenta ou Canzoniere ou Rime sparse ou ainda, simplesmente, Rime.
Segundo José V. de Pina Martins, Petrarca é provavelmente "o maior génio lírico de todos os tempos" e que com as suas Rime ergue "um monumento poético tão importante que nele irão, durante séculos, forragear poetas grandes e pequenos por toda a Europa, imitando-o, repetindo-o, glosando-o, apoderando-se das suas ideias líricas, dos seus processos de composição poética, das suas frases, das suas palavras, das suas trovate, dos seus cândidos ou alusivos jogos verbais".
Se durante o séc. XV a latinitas fez esquecer o Canzoniere, mas não Petrarca que como humanista continuava a ser respeitado e lido, no séc. XVI, em Itália e em toda a Europa, todos os grandes poetas o imitaram. Bembo, Vittoria Colonna, Sannazzaro, Michelangelo Buonarrotti (sim, o escultor e pintor também foi poeta), Ariosto em Itália, Boscán e Garcilaso em Espanha (sem esquecer a tentativa frustrada de Santillana no séc. XV), Ronsard e du Bellay em França, e, em Portugal, poetas como Sá de Miranda, António Ferreira, Pero Andrade de Caminha, Diogo Bernardes e Camões.
O soneto XXXV é sem dúvida uma dos mais conhecidos de Petrarca e, também, um dos que foi mais glosado pelos poetas posteriores. É um dos meus preferidos e,por isso, escolhi-o para este primeiro texto sobre Petrarca.
XXXV
Solo e pensoso i più deserti campi
vo mesurando a passi tardi e lenti,
e gli occhi porto per fuggire intenti
ove vestigio uman l'arena stampi.
Altro schermo non trovo che mi scampi
dal manifesto accorger de le genti,
perché negli atti d'alegrezza spenti
di fuor si legge com'io dentro avampi;
sì ch'io mi credo ormai che monti e piagge
e fiumi e selve sappian di che tempre
sia la mia vita, ch'è celata altrui.
Ma pur sì aspre vie né sì selvagge
cercar non so, ch'Amor non venga sempre
ragionando con meco, ed io co lui.
Vai nestes últimos tempos um grande em França a propósito do véu islâmico. Jean-Louis Harouel tem um excelente artigo no Le Figaro, em que explica por que é que o Estado francês não deve aceitar o véu nas escolas, mas não só, pois também explica em que consiste a matriz cristã da Europa.
Segundo indica este artigo, os negociadores israelitas estão já desiludidos com o dito acordo, pois ter-se-ão apercebido que a vontade de paz dos negociadores palestinianos não seria completamente verdadeira.
Os factos passados na cerimónia, bem como os posteriores acontecimentos, passaram quase totalmente despercebidos na nossa imprensa, muito mais apostada em dizer que este seria o caminho e invectivando o sr. Sharon.
Nunca tive muita fé neste acordo e interrogo-me se os negociadores israelitas antes de terem partido para as negociações não deveriam ter reflectido nestas palavras de Golden Meir:
"Nous pouvons pardonner aux Arabes de tuer nos enfants. Nous ne pouvons leur pardonner de nos forcer à tuer leurs enfants. Nous aurons la paix avec les Arabes quand ils aimeront leurs enfants plus qu'ils nous ne haïssent."
Nesta entrevista ao The Independent, Chomsky, à pergunta "Is anti-semitism on the increase?", tem esta resposta "In the West, fortunately, it scarcely exists now, though it did in the past". Parece que o homem não deixa de dizer disparates...
Tariq Ramadan, recente estrela do Forum Social Europeu realizado em Paris, e não pelas boas razões, pois pouco tempo antes tinha escrito um texto considerado anti-semita, foi no dia 4 de Dezembro à TV francesa. O relato desta estranha noite pode ser encontrado aqui.
Gostava de saber quando é que os "altermondialistes" (e, já agora, a esquerda em geral) compreenderão que a sua aliança com o "militant Islam" é absolutamente contra-natura, pois aquilo que os radicais islâmicos defendem vai contra tudo aquilo que é reclamado como património da esquerda (ex. a situação da mulher, o ser ateu. etc.)
"Super flumina" são as duas primeiras palavras da tradução latina do salmo 137 (mais conhecido por salmo 136 por ser essa a numeração na tradução grega dos Setenta e na antiga versão da Vulgata, bem como em traduções portuguesas mais antigas).
Este famoso salmo colectivo de súplica relembra a tristeza dos exilados na Babilónia por terem sido afastados de Jerusalém depois da queda desta cidade em 586 a.C.
É um dos salmos mais famosos do Livro de Salmos e teve um enorme impacto na literatura ocidental devido às numerosas composições poéticas que o tiveram como base de partida. No caso português, basta lembrar por exemplo Camões com as suas redondilhas "Sobre os rios" (ou "Sôbolos rios" na edição de 1598) ou ainda D. Francisco Manuel de Melo com o seu monumental "O Canto de Babilónia".
No entanto, este salmo de súplica tem um desenvolvimento surpreendente quando a partir do versículo 7 abandona o seu tom elegíaco para tomar a forma de uma violenta invectiva contra a Babilónia, desejando o seu castigo segundo a lei de Talião. Este salmo, que se pode classificar como um salmo colectivo de súplica, teve, como já disse, uma enorme influência na literatura ocidental até aos dias de hoje (é claro que, actualmente, é bem menor). Procurarei dar aqui conta dos autores mais interessantes que sobre ele escreveram, tentar evidenciar a forma como o exploraram .
PSALMUS 137 (136) 1 Super flumina Babylonis, illic sedimus et flevimus, cum recordaremur Sion. 2 In salicibus in medio eius suspendimus citharas nostras. 3 Quia illic rogaverunt nos, qui captivos duxerunt nos, verba cantionum, et, qui affligebant nos, laetitiam: “Cantate nobis de canticis Sion ”. 4 Quomodo cantabimus canticum Domini in terra aliena? 5 Si oblitus fuero tui, Ierusalem, oblivioni detur dextera mea; 6 adhaereat lingua mea faucibus meis, si non meminero tui, si non praeposuero Ierusalem in capite laetitiae meae. 7 Memor esto, Domine, adversus filios Edom diei Ierusalem; qui dicebant: “ Exinanite, exinanite usque ad fundamentum in ea ”. 8 Filia Babylonis devastans, beatus, qui retribuet tibi retributionem tuam, quam retribuisti nobis; 9 beatus, qui tenebit et allidet parvulos tuos ad petram. (versão Nova Vulgata)
Salmo 136 1 Junto dos rios de Babilónia, ali nos assentámos a chorar, lembrando-nos de Sião. 2 Nos salgueiros que lá havia, pendurámos as nossas cítaras. 3 Os mesmos que nos tinham levado cativos pediam-nos que cantássemos (os nossos) cânticos. E os que à força nos tinham levado diziam: Cantai-nos um hino dos cânticos de Sião. 4 Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha? 5 Se me esquecer de ti, Jerusalém, ao esquecimento seja entregue a minha direita. 6 Fique pegada a minha língua às minhas fauces, se eu não me lembrar de ti, se não me propuser Jerusalém, acima de todas as minhas alegrias. 7 Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom, que, no dia de Jerusalém, diziam: Destruí, destruí até aos fundamentos. 8 Filha desgraçada de Babilónia, bravo o que te der o pago do que nos fizeste sofrer. 9 Bravo o que apanhar às mãos, e fizer em pedaços contra uma pedra os teus filhinhos. (trad. da Vulgata do Pe. Matos Soares, Edições Paulistas)
Para uma versão directa do original pode consultar-se a Nova Bíblia dos Capuchinhos da Difusora Bíblica.
É um salmo extraordinário que permitiu, por exemplo, que Camões partindo do paralelismo ente a lição bíblica e o seu reflexo na situação terrena do cristão transferisse esse paralelismo para a problemática da poesia, seu conceito e função.
Leitor de blogs há já quase um ano, hesitei muito antes de fazer eu próprio o meu blog. Por fim, eis-me aqui ainda em fase de instalação, pois não sei se este irá se o "template" definitivo e porque também ainda não escolhi todos os "links" que deverão figurar na coluna da esquerda. Neste blog falarei de política, de literatura, de linguística e de tudo aquilo que me apetecer. Dito isto, mãos à obra...